María Silvia Esteve: “Documentários pessoais também devem se abrir aos outros”
Por Luísa Pécora
Fazer um filme que dialogasse com os outros a partir de uma premissa egoísta. Esta foi a missão que a diretora argentina María Silvia Esteve tomou para si em seu primeiro longa-metragem, o documentário “Silvia”, selecionado para a mostra internacional do FIM20.
A mulher do título é a mãe da diretora, e o filme, uma tentativa de entender a história de sua família. As imagens vêm basicamente de vídeos caseiros rodados em VHS que mostram momentos felizes da vida de seus pais: o casamento, a confortável casa onde viviam, as festas com amigos, os bolos de aniversário. Mas a felicidade registrada em vídeo contrasta com a narração feita pela diretora e suas duas irmãs, que revela um casamento marcado por brigas, problemas psicológicos e prescrição de remédios. Revela, também, uma mulher radiante e cheia de desejos que, presa ao que se esperava dela, nunca chegou a ser quem queria.
Silvia morreu seis meses antes de María Silvia começar a trabalhar no documentário. A "premissa egoísta" que a movia era usar o cinema para contar a verdadeira história da mãe e a vontade de produzir algum tipo de registro antes que o tempo ofuscasse sua memória. Mas a diretora também entendia que o documentário falava sobre algo maior: como Silvia, muitas outras mulheres de sua geração sofreram as consequências de uma sociedade estruturalmente patriarcal. "Não se ouviam os pedidos de ajuda destas mulheres porque se entendia que seu papel era aceitar sua submissão. Elas já tinham realizado o que deviam realizar em suas vidas: já eram mães, já tinham formado família. Agora, tinham apenas de seguir mantendo essa estrutura”, afirmou a cineasta. “Era importante buscar os núcleos universais do filme, que também passam pela memória, pela aceitação dos erros dos nossos pais, pelo perdão.”
Leia os principais trechos da entrevista com María Silvia Esteve:
Como o projeto começou e por que você quis contar essa história?
Em 2013 estava atravessando uma depressão e comecei a fazer um filme sobre histórias da minha família, a partir de gravações em VHS. Cheguei a fazer um corte de 70 minutos, mas percebi que ele não era sincero, que não tinha maturidade para um projeto desse tipo, e o abandonei. Quando minha mãe morreu, me senti impotente. Minhas irmãs e eu sempre pensamos que ela ia ter alguma sorte, que haveria algum tipo de justiça e o universo lhe retribuiria tudo o que havia sofrido. Ficamos com a sensação de que Silvia nunca chegou a ser a Silvia que queria ser. Por outro lado, ao conversar com familiares comecei a perceber que eles tinham subestimado os pedidos de ajuda da minha mãe, por pensarem que ela era uma mulher difícil, louca, que nada devia ser tão grave quanto ela dizia. Tudo isso me fez sentir a necessidade de fazer o filme. Entendi que, se tinha estudado cinema, esta seria a minha maneira de contar a verdade sobre o que Silvia tinha passado e o que haviam feito a ela. Voltei a me encontrar com aquele primeiro documentário e percebi que, embora não falasse de Silvia, ele era sobre a Silvia. Foi quando percebi que já vinha processando aquilo havia muito tempo, e que agora sentia urgência. Sabia que quanto mais o tempo passasse, mais eu iria perdê-la. Então o filme também partiu de uma necessidade egoísta de guardá-la comigo.
Neste momento você pensava sobre o que havia de universal na história da sua mãe ou encarava o filme como um projeto pessoal apenas?
Você pode partir de uma premissa egoísta, mas tem sempre de pensar no outro. O que minha mãe viveu está relacionado ao que muitas mulheres da geração dela viveram, sobretudo na Argentina: o medo de envelhecer, o peso que implicava ser mãe, o dever de ser mulher de família. Não se ouviam os pedidos de ajuda destas mulheres porque se entendia que seu papel era aceitar sua submissão. Elas já tinham realizado o que deviam realizar em suas vidas: já eram mães, já tinham formado família. Agora, tinham apenas de seguir mantendo essa estrutura. Ao longo da minha vida, entendi que o que minha mãe viveu ia além da minha família, que estava ligado a uma terrível estrutura que afeta muitas mulheres. Queria falar também sobre esta geração de mulheres, então era importante buscar os núcleos universais do filme, que também passam pela memória, pela aceitação dos erros dos nossos pais, pelo perdão. Penso que estes temas são inerentes a qualquer ser humano, e era por aí que o filme se abriria aos outros. Qual o interesse de falar sobre a vida da minha família se não for para falar de algo mais? Ao mesmo tempo, não queria dizer: “As mulheres sofrem isso e as coisas são assim”. Queria que o universo do filme tivesse minha forma de pensar e sentir, mas não oferecesse um juízo definitivo. Assim, o espectador tem a possibilidade de interpretar tudo isso.
O filme insere alguns efeitos típicos das imagens em VHS, como falhas, repetições e interrupções. Fale um pouco sobre as escolhas que fez do ponto de vista estético.
O VHS era uma ferramenta útil para falar sobre memória, porque a memória também está cheia de falhas, repetições, de avançar e retroceder. O próprio material já falava sobre a impossibilidade de se reconstruir uma memória que já está quebrada e pixelada, desta imagem que é acessível, mas nunca totalmente nítida. Ao mesmo tempo, quis trabalhar o VHS como se fosse uma grande ficção. Começo o filme interferindo e alterando muito as imagens e depois vou tirando as camadas. Ao final, você só tem a imagem do VHS, porque não há mais nada a ocultar. Não há capas escondendo a verdade: as coisas são como são e você aceita ou não.
Você sente que encontrou aquilo que buscava quando deu início a este projeto?
A história da minha mãe era algo que permanecia a portas fechadas, que dava dor, vergonha. Era algo pesado, que devia ser escondido. Depois de encarar essa história e transformá-la em outra coisa, sinto que minha mãe segue viva em outro lugar. Um lugar que aparece sempre que alguém se identifica com ela, sempre que alguém sente que sua história está sendo contada a partir da história dela, sempre que alguém se identifica com o que o filme diz sobre o que é ser mãe, o que é ser filha, o que é o perdão. Sinto certo alívio em ter feito esse documentário, porque agora essa parte da Silvia não vai desaparecer. Ela não está mais aqui, mas está em outro lugar, e vai se ressignificar cada vez que alguém assistir ao filme. [A história dela] já não é algo a ser escondido, algo secreto. Não sei se “Silvia” é um bom filme ou se poderia ser um filme melhor. Mas sei que o fiz com muita sinceridade. E se o projeto é sincero, vale a pena. Vale a pena enfrentar a dor para tirar algo que possa se comunicar com alguém.
A narração dá a entender que suas irmãs apoiaram o projeto, ainda que talvez tivessem certas reservas. Fiquei curiosa em saber: como elas reagiram ao filme?
No começo elas tinham muito medo, e com razão, já que estava querendo expor algo que lhes causava dor. Além disso, comecei apenas seis meses depois da morte da minha mãe. Elas assistiram ao filme pela primeira vez uma semana antes da estreia e reagiram de forma diferente: a mais velha sofreu bastante, a outra não tanto, talvez por ser a menor e estar menos exposta. Mas conforme foram indo às projeções, elas foram vendo as pessoas se aproximarem para contar suas próprias histórias, ou para dizer como era a linda a história da minha mãe e o amor que ela tinha por nós três. Aos poucos, o sentimento foi mudando. Há algumas semanas elas me disseram que estavam muito orgulhosas de o filme existir, porque era como se, de alguma forma, minha mãe tivesse conseguido o que sempre buscou em vida. Desta maneira inesperada, ela tinha conseguido um sentido de realização, uma forma de justiça. Foi um alívio ouvir isso, pois embora minhas irmãs tenham me apoiado e me acompanhado durante o processo, elas não escolheram nada disso. Era uma responsabilidade muito grande.
Como é ter o filme sendo exibido no Brasil como parte do FIM?
Penso que o filme pode ser entendido em vários territórios, mas sinto que na América Latina há uma compreensão maior, até mesmo no que diz respeito ao conceito de família. Há algo de muito latino-americano ali. E também me parece que o festival era ideal para a estreia do filme no Brasil. Fiquei muito contente com a seleção, pois senti que tudo o que o festival simboliza, tudo o que representa, é Silvia. Era o caminho lógico.
Que conselho daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
É inegável que as coisas são mais difíceis para nós e que há sempre uma certa desvalorização do nosso trabalho. É inegável a estrutura em que vivemos. Mas justamente porque existe essa estrutura é que temos de lutar. Se não nos dão espaço, temos de buscá-lo. Se não há histórias sobre mulheres, temos de contar histórias de mulheres. Temos de trabalhar essa mudança para que a necessidade de a mulher trabalhar no cinema seja compreendida. É preciso ter paciência e não se frustrar. Para mim, “Silvia" foi a prova mais clara de que se alguém quer mesmo fazer um filme, é possível fazer. Mesmo que sem dinheiro, mesmo que leve muito tempo, mesmo que seja difícil, é possível. Fiz “Silvia" na minha casa, no meu computador, com um gravador emprestado - porque precisava fazer. É preciso buscar diferentes vias, mas é preciso fazer.
*Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema