Crítica Elviras: Meu Corpo É Político

A estreia nacional do documentário brasileiro Meu Corpo é Político, dirigido por Alice Riff, aconteceu em 12 de junho do ano passado, ocasião em que comemoramos no Brasil o dia dos namorados, e rendeu o prêmio de Melhor Longa-Metragem Brasileiro na 6ª edição do Festival Internacional Olhar de Cinema de Curitiba. Não poderia haver melhor ocasião para a exibição desse filme do que numa noite de comunhão de maiores afetos como esta. Aliás, junho também é o mês do Orgulho LGBTI, mais um motivo de celebração em tempos nos quais a intolerância ainda impera, principalmente no que tange às questões de gênero.
A escolha da diretora em acompanhar o cotidiano de pessoas trans, pretendendo criar um novo imaginário imagético e estético para os espectadores sobre a realidade de quem não se encaixa na cisgeneridade binária convencionada pela sociedade, já é, por si só, uma manifestação política de resistência e vanguarda. Nesse documentário, acompanhamos um pouco do dia-a-dia do homem trans Fernando Ribeiro, das mulheres trans Giu Nonato e Paula Beatriz e da artista queer Linn da Quebrada.
O intuito de Alice Riff ao realizar essa obra era possibilitar que pessoas trans vissem outras referências de imagens produzidas a partir dos discursos das protagonistas, visando escapar das inúmeras caricaturas que o cinema, por décadas, fez uso. A diretora buscou construir, portanto, imagens que fossem diferentes daquelas que a televisão reifica diariamente de forma estereotipada e muitas vezes negativas.
Além de conferir protagonismo àquelas pessoas que, em geral, circulam de forma periférica nas cidades e nas produções audiovisuais, a diretora almejou ampliar o conhecimento das pessoas cisgêneros, que não precisam fazer qualquer esforço para simplesmente existir no mundo, uma vez que são conceituadas como o padrão normativo. Nesse sentido, o título Meu Corpo é Político é bastante simbólico, pois a própria performance existencial das personagens necessita de maior elaboração no que tange à estética de cada corpo ao se projetar nas tarefas mais ordinárias do cotidiano.
Mas não apenas o corpo é político. A linguagem que usamos para nos comunicar também é. E isso fica muito evidente quando Linn da Quebrada aparece em cena gravando uma música para integrar, naquela época, seu novo repertório (o filme começou a ser rodado há mais de dois anos). A ressignificação de palavras que a priori eram usadas de forma pejorativa, para ofendê-las, também é político. Essa reapropriação da linguagem, portanto, subvertendo o que antes era negativo, é uma marca dos movimentos identitários que visam o empoderamento dos grupos minoritários de direitos.
Formalmente, trata-se de um documentário convencional, mas a semiótica proporcionada pelas falas, performances e modos de se colocar e ver o mundo é altamente transgressora. O diálogo que Alice Riff constrói com Fernando, Giu, Paula e Linn para alcançar o resultado final é de total afinação, pois segundo a diretora, eram as próprias personagens que iam ditando o ritmo da narrativa.
Dessa forma, o documentário se propõe a marcar uma cisão com o modo de produção cinematográfico estabelecido de forma hegemônica. Ao colocar essas outras narrativas em evidência, destacando novas maneiras de pensarmos as imagens, o cinema se atualiza e se transforma. O olhar opositivo (como formulado por Bell Hooks) que a diretora empreende, tensiona a própria forma de se fazer cinema no que tange aos agentes produtores de conteúdo e significados.
Meu Corpo é Político é daqueles filmes que gostaríamos que circulasse de forma ampla pelos mais diversos segmentos exibidores, mas principalmente no circuito comercial tradicional. Mais do que ver esse filme é preciso sorvê-lo, a fim de levantar um debate acerca das inúmeras questões (inclusive do extracampo) que ele suscita.
Crítica originalmente publicada no site Delirium Nerd.