Crítica Elviras: O Chalé É Uma Ilha Batida de Vento e Chuva
O CHALÉ É UMA ILHA BATIDA DE VENTO E CHUVA
Por Luana Cabral
A partir dos encontros com a literatura de Dalcídio Jurandir, especialmente com as cartas escritas pelo romancista e endereçadas à sua esposa Guiomarina e a seu filho Alfredo, de apenas nove meses de idade, na ocasião de uma longa viagem fluvial, O chalé é uma ilha batida de vento e chuva é um percurso realizado pela cineasta Letícia Simões através das mesmas águas percorridas por Delcídio, em busca dos personagens caros aos seus relatos. Conforme o próprio título antecipa, o ato descritivo, sobretudo manifestado pela linguagem escrita e falada, é um elemento estrutural e de severa importância para a narrativa do filme, essa, por sua vez, guiada pela leitura melódica das referidas cartas.
À cada palavra dita, a realizadora/narradora confere novas modulações e entonações à sua própria voz, provocando o florescer do texto e a sua atualização frente às imagens do Marajó com o qual ela e sua equipe, à sombra daquilo que Delcídio descreveu, se encontram. Para além disso, o texto, lido por Letícia, funde a cineasta e as palavras do romancista numa unidade própria, composta pela escritura feita por cima de uma outra escritura, ou pela imagem posta (e vista) sobre uma outra imagem. Como se trabalhasse um filme-palimpsesto, a cineasta inscreve a si e às suas imagens do Marajó colando-se às semelhanças para com as cartas de Delcídio, e abrindo brechas para que as dissonâncias, as fricções entre esses dois mundos de representações, se materializem.
O filme surge, pois, não a partir da apropriação dessas cartas, mas da busca por enxergar as palavras ali contidas como imagens - as imagens próprias do escritor, por cima das quais a realizadora inscreve as suas. Imagens estas que denunciam uma certa distância daqueles que filmam em relação ao universo que protagoniza o romance e o filme, o universo do Marajó. Ao filmar as crianças nas escolas ou ao conversar com os trabalhadores do campo, a cineasta parece não conseguir se relacionar com aquelas pessoas de maneira mais intensa do que permitem suas protocolares perguntas. Essa distância, por contraste, faz-se evidente no momento específico em que ela, ao entrevistar um trabalhador do campo, deixa-se levar por uma flor, “flor roxa, de cheiro bom”, que encontram no meio do caminho e que parece distrair aos dois de igual maneira. A leveza deste momento compartilhado deságua por e através do filme e torna flagrante a tensão entre proximidade e afastamento que permeia O Chalé.
A potente convergência entre trilha musical e som direto garantem uma dimensão de engajamento às imagens, contrastadas à forma contemplativa como são filmadas as pessoas, as escolas e, sobretudo, as vistas do Marajó. Assim como a paisagem sonora, a água, tão fundamental para os percursos do escritor e da realizadora, tão fundamental para os moradores daquela região, parece não se contentar em estar a uma certa distância, por vezes assumindo o primeiríssimo plano ou tomando-o, de fato. Sobretudo, o que se apresenta em relação a ela é um olhar nu e calmo, muito mais do que contemplativo, que permite ao filme enxergá-la quase que como algo além da água, além do rio.
Voltamos à voz de Letícia: a entonação interpretativa daquelas palavras, como se quisesse transformá-las também em palavras suas, num pedaço de seu romance. Em pontuais momentos, nos distanciamos do fato de ser a narração uma leitura de cartas passadas e nos concentramos apenas na voz da cineasta. E parece, de fato, ser ela quem diz: "o barco fura para todos os lados, odeio essa viagem, odeio esse trabalho”.