Amandine Gay, Roberta Estrela D’Alva e Viviane Ferreira trocam reflexões e experiências no FIM20
A cineasta francesa Amandine Gay participou intensamente do FIM20: foi selecionada para a mostra internacional com o documentário “Abrir a Voz”, concedeu uma entrevista ao site do festival, debateu afrofeminismo em um evento online com a filósofa Djamila Ribeiro e participou de um potente painel sobre cinema e diásporas negras com as diretoras brasileiras Roberta Estrela D’Alva e Viviane Ferreira.
Realizado no canal do FIM no YouTube e mediado pela jornalista Ana Paula Souza, o painel tocou em diferentes pontos relacionados à experiência das mulheres negras no cinema e na sociedade, tendo os longas-metragens das três realizadoras como ponto de partida. O protagonismo da mulher negra que marca “Abrir a Voz” também está em “Um Dia com Jerusa”, dirigido por Viviane e selecionado para a mostra competitiva nacional do FIM20, e “Slam: Voz de Levante”, dirigido por Roberta em parceria com Tatiana Lohmann e ganhador do FIM18.
As cineastas falaram sobre diferentes pontos de contato entre as experiências de Brasil e França, passando por questões como acesso ao capital e a necessidade de as mulheres negras terem de “trabalhar sempre, mais e melhor” em uma sociedade capitalista, racista e patriarcal. Falaram, também, sobre a potência da “voz" destas mulheres - palavra que, aliás, está logo no título de dois dos filmes debatidos.
Foi para dar espaço central à voz das mulheres negras que Amandine optou por fazer um documentário no formato “talking heads”, no qual passa de uma entrevistada para a outra como numa conversa. Não há imagens de cobertura ou tentativa de distração, já que a ideia é que as mulheres negras justamente possam falar sem interrupções. A diretora contou, também, que buscou mostrar como era possível usar luz natural para filmar os corpos negros, após ter ouvido que “atrizes negras eram difíceis de iluminar”.
Com longa carreira no teatro e pioneira do slam no Brasil, Roberta lembrou que o conceito de “voz” vem sempre acompanhado do conceito de “escuta”. “Às vezes usamos a expressão ‘dar voz’, mas na verdade todo mundo tem voz. O grande passo é que essa voz seja ouvida”, explicou. “Ao dirigir um filme, você faz certas escolhas para que uma voz seja ouvida. Questões como a iluminação não são apenas estéticas, mas também políticas.”
Viviane acrescentou a camada da oralidade, tão importante para o reencontro de pessoas negras com sua memória ancestral. Esta questão, segundo ela, esteve sempre presente durante o processo de desenvolvimento de “Um Dia com Jerusa”. “No meu filme, há um esforço de trabalhar a oralidade da maneira mais visual possível e com a mesma potência visual de quando minha avó me contava histórias”, afirmou.
Pela caixa de comentários, a cineasta Marcela Lordy (também selecionada para o FIM20 com “O Livros dos Prazeres”) perguntou se a representação subjugada da mulher negra estava começando a mudar. Roberta afirmou que sinais de mudança estavam refletidos no próprio fato de três realizadoras negras estarem participando de um painel. “Mudou um pouco? Mudou. E não tem mais volta, não tem mais como retroceder”, afirmou. “As pessoas estão chegando e as pessoas brancas terão de abrir mão [de espaço] porque vai ter alternância de lugar até conseguirmos equilibrar [o cenário]. E aí virá a pergunta: é possível fazer junto?”
Amandine disse que há progresso no que diz respeito ao discurso, mas que “o sistema e as instituições ainda estão bloqueados”. Ela lembrou outros momentos da história no qual o discurso antirracista “não se traduziu institucionalmente”. “Me interessa saber se dessa vez vamos conseguir não apenas ser ouvidos, mas de fato obter aquilo que pedimos: mudanças estruturais, melhores leis e relações de poder mais favoráveis. Este é o desafio que temos hoje.”
As três diretoras também falaram que o modo como foram criadas foi fundamental para que pudessem se enxergar nos espaços que a sociedade capitalista, patriarcal e racista nega às mulheres negras. Viviane deu um bonito depoimento sobre sua infância e adolescência em Coqueiro Grande, na periferia de Salvador, “um paraíso onde as pessoas ensinam que todos podem ser tudo o que quiserem”. Ela citou, especificamente, as matriarcas de sua família. “Do ponto de vista racional e político, sei que certos espaços me são negados. Mas me fortalece transitar pelo mundo entendendo que todos estes espaços me pertencem - porque minha família me disse isso”, afirmou. “Entre ouvir as cruezas do mundo e ouvir aquilo que as mulheres que me deram as primeiras mamadeiras me disseram, prefiro acreditar nelas."
Assista ao debate completo aqui.
Leia a entrevista com Amadine Gay aqui.