Dominga Sotomayor sobre “Tarde Para Morrer Jovem”: “Me interesso pelo que não se pode capturar”
Por Luísa Pécora
“Transição” é a palavra-chave de "Tarde para Morrer Jovem", filme que integra a mostra internacional do FIM20, e que em 2018 fez da cineasta chilena Dominga Sotomayor a primeira mulher a ganhar o prêmio de direção no Festival de Locarno. Primeiro, há a transição de um país: a história se passa no verão de 1990, pouco depois da queda do general Augusto Pinochet (1915-2006), quando o Chile passava da ditadura para a democracia. Depois, há a transição de três jovens – Sofía, Lucas e Clara -, que amadurecem e se transformam enquanto se preparam para a festa de ano novo da comunidade isolada onde vivem.
Dominga conhece bem a história que está contando. Em 1990, quando tinha cinco anos, ela se mudou com os pais para a mesma comunidade que serve de locação para o filme. A diretora chilena, que cresceu sem televisão, chegou ao cinema por meio de outras artes e foi influenciada principalmente pela mãe atriz e a avó pintora. Na adolescência, descobriu o cinema de diretores como Abbas Kiarostami (1940-2016) e Michelangelo Antonioni (1912-2007), fez teatro e percebeu que o cinema unia muitos de seus variados interesses. Além de ter dirigido três longas-metragens, também é uma das fundadoras da produtora Cinestación e do Centro de Cinema e Criação, um centro cultural em Santiago.
Abaixo, leia trechos da entrevista que Dominga Sotomayor concedeu ao site Mulher no Cinema em fevereiro deste ano:
O filme foi rodado na mesma comunidade na qual você cresceu. Foi preciso alterar muito a locação ou ela já atendia naturalmente ao que você buscava?
O lugar é o mesmo, mas mudou muito. Tivemos de transformar muitas coisas, usar apenas algumas partes que ainda estavam como nos anos 1990. A comunidade passou a ter muito mais casas do que na minha época, quando eram apenas umas dez, não havia eletricidade e todas as estradas eram de terra. Mas para mim era importante filmar ali e não buscar outro lugar. Pudemos usar algumas casas que funcionavam, como a de Sofia, que só adaptamos um pouco. Foi quase como desconstruir: esconder a eletricidade, deixar tudo mais precário.
Todos os atores são profissionais ou você combinou atores e não atores?
O casting foi bem desafiador porque há um pouco de tudo. Todos os jovens e crianças são não atores e não tinham nenhuma experiência. Muitos vivem atualmente na comunidade: a busca partiu de crianças que moravam ali, que tinham a experiência daquele lugar. Depois há adultos não atores, como o pai de Sofía, que mora na comunidade e é pintor. E também há atores com muita experiência, como Antonia Zegers, que interpreta Elena, ou Alejandro Goic, que fez um monte de filmes. O mais desafiador era colocar todos eles no mesmo tom e fazer com que estivessem todos nesse mesmo mundo. Também não entreguei o roteiro aos atores jovens. Com as crianças, fazíamos jogos, dávamos a ideia de que estavam jogando e reagindo, não atuando, para que tudo ficasse mais vivo. O filme é muito parecido com o roteiro, mas tomei mais liberdade do que em outros filmes. Algumas coisas mudaram em relação ao texto, algumas situações surgiram na hora.
A música é muito presente no filme. Como buscou trabalhar este elemento narrativo?
Sempre soube que seria um filme musical. Já no roteiro coloquei muitas das canções que aparecem em cena. Gosto muito de brincar com a música popular e sinto que em meus filmes, de forma geral, os personagens têm muita dificuldade de dizer o que está acontecendo, então a música que escutam meio que fala por eles. Além disso, o filme é sobre a transição, e aquele foi um período também de transição musical no Chile. Estava acontecendo o “canto nuevo”, uma música comprometida com a política, que se ouve mais no início do filme, e no outro extremo estava Michael Jackson e música pop. Então o filme tem esse caos musical.
Seu filme me lembrou um pouco os de Lucrecia Martel, no sentido de que, como ela, você não parece especialmente preocupada com a trama ou com uma narrativa que avança, e também não parece querer explicar demais as coisas. Por que esse tipo de cinema te atrai?
Por um lado, não me interessam as grandes histórias. Me interessa mais o que está no meio, a transição, aquilo que não se pode capturar. Mais do que documentar grandes acontecimentos ou histórias, me interessa a zona intermediária na qual você pode documentar emoções. Me interessa documentar algo vivo. A outra coisa é a vontade de fazer filmes mais abertos, nos quais você pode estar. É quase como um convite para se estar em outro lugar e outro tempo. Simplificando muito, penso que há dois tipos de filmes. Há os filmes que fazem você se esquecer de si mesmo, que são os americanos, que têm causa e efeito e te levam de um ponto a outro em duas horas. Nessas duas horas, você se esqueceu de você. E há os filmes que te devolvem o tempo, que te obrigam a estar com você mesmo, e que nem sempre não são prazerosos. Às vezes até são incômodos, porque você tem de se conectar consigo mesmo. E para mim isso é mais interessante: fazer filmes imperfeitos, que dão tempo ao outro. Relatos mais incompletos, que creio que são mais políticos também. Isso implica que as pessoas não venham me dizer “amei seu filme” ou “que filme lindo”. Acho que são experiências que ficam com você um tempo, que te fazem pensar em você, talvez recordar algo que tinha esquecido ou mudar de ideia.
O cinema do Chile tem recebido grande reconhecimento internacional nos últimos anos, inclusive no Oscar. Isso ajudou a fazer com que os chilenos assistam a mais filmes do país?
Por um lado acho que a percepção do público mudou. Antes as pessoas achavam que todos os filmes chilenos eram obscuros e políticos, e agora elas sabem que há muita variedade. É um momento explosivo, diferente. Ao mesmo tempo, estamos em uma terrível crise de público. Poucas pessoas vão ver filmes chilenos e os poucos cinemas mais “de arte” têm sido demolidos. É um momento bem crítico no Chile, ainda que seja um momento super bom no que diz respeito a como as pessoas de fora veem o nosso cinema. Acho que os chilenos dão valor aos filmes, mas o governo não dá atenção suficiente ao cinema, nem os recursos necessários.
Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
É preciso ser muito insistente, curiosa, questionar tudo. Especialmente no caso das latino-americanas, é preciso saber de produção, distribuição – não dá para se contentar em ser diretora. Acho que os projetos ganham valor com o tempo, então é preciso ser paciente. E é preciso viver o processo: fazer o que se tem vontade de fazer com devoção, e não pensar em qual festival o filme vai passar ou qual repercussão vai ter. Na verdade, se trata de ir para dentro. A única coisa particular de uma pessoa é ela mesma. Todas as histórias estão contadas, então não é preciso olhar para fora ou para longe. Olhe para dentro de você, porque isso é o que você tem de mais valioso.
*Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema