Grace Passô e a arte na pandemia: “A elaboração em linguagem me organiza”
Um tributo à diretora, atriz, dramaturga e escritora Grace Passô se desdobrou em um potente debate online sobre a arte na pandemia. Grande homenageada da segunda edição do FIM20, Grace fez uma provocação ao festival: promover não um painel tradicional sobre os trabalhos que fez até agora, mas, sim, uma conversa nas quais ela e outras artistas negras compartilhassem experiências de criação artística em tempos de Covid-19.
“Neste período muito solitário, precisamos de referências”, justificou Grace durante o debate, realizado nesta sexta-feira (13) no canal do FIM no YouTube. Mediado pela pesquisadora e curadora Janaína Oliveira e intitulado “Arte em Duplo Twist Carpado na Pandemia”, o painel reuniu Grace à artista visual e professora Cíntia Guedes e à diretora Glenda Nicácio, que também participa do festival com “Até o Fim”, selecionado para a mostra competitiva nacional.
A “pirueta perfeita” criada pela ginasta brasileira Daiane dos Santos guiou a conversa como metáfora deste movimento de virada exigido pela pandemia. Para o setor artístico, já fortemente abalado pelos cortes de financiamento público dos últimos anos, a crise sanitária e a necessidade de distanciamento social levaram à busca por novas formas de criação, produção e distribuição.
A própria Grace realizou o que talvez seja a obra audiovisual mais impactante da quarentena, o curta "República", que integra a programação do FIM20 e foi rodado em março. A convite do Instituto Moreira Salles e contando com a colaboração de Wilssa Esser na fotografia, montagem e som direto, Grace escreveu, dirigiu e protagonizou o filme sobre “uma brasileira que desperta num país exausto de atos violentos”.
“Para mim, criar é um movimento de sanidade, uma tentativa de mover a mente. A elaboração em linguagem me parece mais possível, me organiza um pouco”, definiu a homenageada, acrescentando que "República" surgiu de uma sensação de “exaustão”. “Era uma exaustão não só do agora, mas desse movimento ininterrupto de necessidade de luta, de ter de produzir respostas a estados de exceção, desta inauguração incessante de formas de violência.”
Durante o painel, as debatedoras conversaram sobre como a exigência do duplo twist carpado, que pode parecer novidade a grupos privilegiados, era uma realidade constante para as artistas negras muito antes da pandemia. “As organizações pretas já estavam ensaiando o duplo twist carpado nos últimos anos, décadas e milênios”, afirmou Glenda. “Há grandes momentos de caos que abalam o mundo, mas que mundo está sendo abalado? É claro que todas estamos sendo atingidas, mas o caos destrói a quem? Acho que [este momento] ativa nosso instinto de sobrevivência, e sobrevivência é palavra-chave para nós. A gente já parte deste lugar de sobrevivência enquanto indivíduo, enquanto mulher preta criadora."
Cíntia disse ter se emocionado ao assistir "República" pelo modo como Grace consegue “endereçar o problema da ficção que é a nossa realidade”. “O que mais tem criado zonas de contato comigo são esses trabalhos que me oferecem habitar outros tempos, e que também me dizem que há uma temporalidade que não é essa, dessa urgência da pandemia”, afirmou. “É o duplo twist carpado na pandemia, mas a gente só consegue performá-lo porque já o estamos fazendo desde muito tempo.”
O debate completo pode ser assistido aqui.
Vale lembrar, também, que os filmes da Homenagem Grace Passô do FIM20 podem ser vistos online e gratuitamente até 17 de outubro, o último dia do festival. Além de “República”, a seleção inclui o média-metragem “Vaga Carne”, dirigido por Grace em parceria com Ricardo Alves Jr., e o curta “Sem Asas”, estrelado por Grace e dirigido por Renata Martins. Veja como assisti-los aqui.