Crítica Elviras: Me Corpo Minha Vida
MEU CORPO MINHA VIDA
Por Stephanie Espindola
A descriminalização do aborto é, assim como muitos assuntos de utilidade pública, um tabu no Brasil. Legalizado em diversas partes do mundo - em alguns lugares há mais de 10 anos - o aborto é tratado como pecado pelo Congresso Nacional, baseado em uma agenda puramente religiosa, e divide a opinião da população. É com esse olhar que Helena Solberg traz para o Festival Internacional de Mulheres no Cinema - FIM o documentário Meu Corpo Minha Vida. Com 50 anos de carreira, Helena produziu filmes sobre diversos temas e, em vários deles, conta em tela os percalços e desafios de diferentes mulheres ao redor do mundo. Aos 80 anos, a diretora entrega um documentário coeso, inteligente e poderoso.
Em Meu Corpo Minha Vida, a cineasta permeia o debate sobre a descriminalização do aborto de forma neutra e objetiva, abrindo espaço para opiniões opostas durante os 74 minutos de duração. Usando como base o caso de Jandyra Magdalena dos Santos, cujo corpo foi encontrado esquartejado e carbonizado após seu assassinato em uma clínica clandestina no Rio de Janeiro, em 2014, Helena traça um panorama sobre a sobrevivência das mulheres pobres e periféricas no Brasil. A produção utiliza de depoimentos não só de familiares da vítima, como também de juízes, médicos, religiosos e ministros, construindo uma análise de cenário que choca, mas busca a reflexão.
O caso de Jandyra ganhou repercussão nacional e internacional devido à crueldade de sua execução. Aos 27 anos e sendo mãe de duas crianças, Jandyra resolve fazer um aborto em uma clínica clandestina do Rio de Janeiro ao descobrir estar grávida de seu terceiro filho. Sem o amparo da família e frente à negligência do Estado, é vítima de suas condições: mulher, mãe solo, moradora da favela e sem estabilidade financeira para criar mais uma criança. Em busca da sobrevivência - e mesmo sabendo ser um crime -, Jandyra se vê parte da estatística que assombra: uma mulher morre a cada 9 minutos por abortos clandestinos no País. Ao todo, um milhão de abortos são feitos todos os anos. E esses dados só tendem a piorar.
Meu Corpo Minha Vida traça inúmeros paralelos: entre o abandono do Estado às mulheres no Brasil e o amparo disponibilizado pelo governo da Alemanha a uma turista brasileira que se viu grávida em solo alemão; entre o pastor protestante que considera o aborto um assassinato e a representante católica que acredita que a legalização irá favorecer a sociedade e as mulheres; entre o deputado “religioso” que propõe um projeto de lei (PL) regredindo os direitos das mulheres e o juiz que decidiu que aborto até os 3 primeiros meses não é crime. Esses paralelos são poderosos e precisos para a construção do documentário, instigando o debate.
Em seu cerne, Meu Corpo Minha Vida é um sinal de alerta e de reflexão. A produção escancara em tela o papel da mulher aos olhos da sociedade, relegada a ser a multiplicadora e nada mais, mas também dá visibilidade aos movimentos que desafiam as regras e reinventam o lugar da mulher, e o que é ser mulher, nos dias atuais. Com um excelente trabalho de costura de fatos e debates abertos e imparciais, a diretora coloca em perspectiva a negação da liberdade à mulher ao longo das décadas, deixando uma sensação de incômodo - e vontade de fazer a diferença -, em quem assiste. É um trabalho único e genuíno.