Crítica Elviras: A Moça do Calendário
A MOÇA DO CALENDÁRIO
Por Daniela Strack
Em A Mulher de Todos (1969), Doktor Plirtz (Jô Soares) diz para Ângela Carne e Osso, interpretada por Helena Ignez, que vai fazer um documentário com "todo mundo em preto e branco e só você em tecnicolor". Em A Moça do Calendário, novo filme dirigido por Ignez, Inácio (André Guerreiro Lopes) trabalha como mecânico na oficina experimental e ferro velho "Barato da Pesada" e lá sonha com a única imagem colorida nas sequências da oficina: a foto da moça do calendário pregada na parede. É a partir dessa ressignificação de imagens antológicas do cinema brasileiro, que a diretora constrói um filme sobre a sociedade atual, nossas relações de trabalho e as questões políticas que compreendem o Brasil dos dias de hoje.
Baseado em um roteiro de curta-metragem nunca filmado por Rogério Sganzerla e escrito em 1987, Ignez vira do avesso os personagens e transporta a narrativa para questões do século XXI. Inspirada no livro "A Sociedade do Cansaço" do filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han, a realizadora subverte os problemas de Inácio, que antes fazia um exame de fertilidade e vivia preocupado com as traições da mulher Cidinha (Zuzu Leiva), e agora demonstra uma insatisfação com o estado capitalista e tenta resolver seus problemas através de um exame neuronal; Cidinha, por sua vez, transforma-se em uma mulher honesta, dona de si, do seu corpo e dos seus prazeres; já a "Moça do Calendário", Lara, interpretada por Djin Sganzerla, passa a ter sua história: é militante do MST.
No primeiro plano do filme, estão as ruas de São Paulo, e por ali passa uma imensidão de carros. Um homem entra em quadro, causando estranheza. Vemos seus cabelos cacheados descoloridos, sua blusa camuflada. O plano seguinte é ainda mais aberto, o viaduto cerca-se de prédios, e, em primeiro plano, o personagem movimenta os braços, regendo a sinfonia da cidade. São as desventuras de Inácio que guiam a narrativa. A imagem do ex-gari, mecânico, representando a força do trabalho do proletariado, é contrastada com a do automóvel, das grandes cidades com suas avenidas e viadutos, essas atreladas à ideia comum de prosperidade, modernidade e liberdade.
Ao longo do filme, teremos sempre esse jogo de contrastes: embaixo dos viadutos, há os moradores de rua; dentro da oficina, o "empresário" é mostrado como um "pré-capitalista primário", enquanto os funcionários discutem direitos trabalhistas, política e até prestam uma homenagem a Grande Otello. Além disso, dentro das cidades sempre existe a resistência: a militância, os apartamentos comunitários, o MST… Assim, o filme constrói aos poucos uma radiografia das cidades, e de como sobreviver nesses espaços construídos para o progresso e inóspitos para as pessoas e suas singularidades.
Ainda nesse primeiro plano, também já se estabelece o aspecto mais interessante da obra de Helena Ignez: a reinvenção de um cinema que ela mesma foi protagonista. No filme A Mulher de Todos, há uma cena parecida, vemos um personagem de costas para a câmera, ele segura uma navalha, movendo os braços e mãos como se regesse uma orquestra. Lá, entretanto, a cena dava-se em frente a um matagal de natureza abundante. E não poderia ser diferente, já que no filme de Sganzerla falava-se de amor, sexo e desejo. De libertação sexual. Em 69, o personagem de Ignez dizia "sou simplesmente uma mulher do século XXI, sou um demônio antiocidental, eu cheguei antes, por isso sou errada assim", hoje Helena Ignez ressignifica essa mulher, já no séc. XXI, e a coloca como uma mulher possível na figura de sua filha, Djin Sganzerla.