Crítica Elviras: Mataram Nossos Filhos
MATARAM NOSSOS FILHOS
Por Carol Lucena
"O Brasil é o país que mais mata no mundo, a maioria jovens, que perdem precocemente a chance de viver seus sonhos e desejos."
Começa assim a sinopse deste documentário dirigido por Susanna Lira, destacando o severo fato de que o Brasil possui uma das polícias mais violentas e letais do mundo. Participando do Festival Internacional de Mulheres no Cinema - FIM, o filme aborda a luta das Mães de Maio, movimento inspirado pelo grupo argentino de mesmo nome. No Brasil, elas lutam por justiça após terem seus filhos assassinados pela polícia.
O longa traz diversos depoimentos de mães que contam como o crime que mudou suas vidas aconteceu. A maioria não consegue segurar a emoção, por motivos óbvios, e a dor em suas vozes é palpável. Mataram Nossos Filhos é um filme pesado de assistir, mas extremamente necessário. Nos coloca frente a frente com a realidade brutal de que temos plena consciência, de tanto que sai no jornal, e que mesmo assim continuamos a ignorar.
O filme humaniza as histórias dessas pessoas assassinadas, muitas vezes tratadas apenas como estatística, como em várias matérias jornalísticas diárias. A doçura estética empregada pela diretora confere um tom de melancolia e ao mesmo tempo reverência pela vida: a vida daqueles rapazes que poderia ter continuado, não fosse a violência que os interrompera. A cena final é belíssima, e quase impossível de não despertar lágrimas. E elas são muito importantes: é a emoção, afinal, que faz as pessoas se importarem.
Muitas dessas mães perderam seus filhos nos Crimes de Maio, que assolaram o estado de São Paulo justamente durante na época do dia das mães em 2006. Em retaliação a ataques do PCC, a polícia saiu matando indiscriminadamente nas periferias de várias cidades paulistas, num verdadeiro ato terrorista, com intuito de aterrorizar a população e fazer uma demonstração de força. Como sempre, homens jovens negros foram a maioria das vítimas, perpetuando a tradição racista do país. A imensa maioria deles não tinham nenhuma relação com facções criminosas, como alguns tentaram justificar à época.
Dói ainda o relato de uma mãe que teve a filha grávida assassinada junto com o marido, quando iam à padaria. (Essa mãe, Vera Lúcia, faleceu este ano, e o filme é dedicado a ela.) Não existe piedade quando o Estado cria o policial para matar. E um dos acertos do filme é mostrar que a relação não é individual, do policial que erra ou é corrompido, mas da responsabilidade do próprio Estado, que está por trás não apenas da formação dele, mas também da completa indiferença quanto à justiça e apuração dos casos. Apenas um único policial foi condenado por esses crimes até agora.
O Estado continua passando a mensagem de que essas vidas não importam. Aconteça o que acontecer com elas, pouco será feito oficialmente a respeito. O movimento das Mães de Maio foi essencial então em duas frentes: tanto para trazer um novo sentido à vida despedaçada daquelas mulheres e suas famílias, quanto para trazer visibilidade ao descaso e impunidade desses crimes. O documentário enfatiza a sororidade entre as mães, que se consolam, escutam umas às outras, e se apoiam para que consigam lutar juntas.
É preciso, ainda mais nesses atuais tempos de retrocesso político, lembrar dessa terrível realidade do nosso país. A grande força das Mães de Maio vem de seu enfrentamento pacífico e persistente na luta por justiça e memória. Mas é preciso que a sociedade inteira se envolva para exigir mudanças reais nesses mais de 500 anos de Brasil, que infelizmente nunca saíram do pensamento e conduta coloniais racistas. Este documentário contribui enormemente para dar ainda mais visibilidade ao movimento. São contribuições como a da diretora Susanna Lira, que também é pós-graduada em direito internacional e direitos humanos, que fazem mais pessoas repensarem suas posições. São mulheres como Susanna, Vera Lúcia, Débora (a líder das Mães de Maio) e muitas outras, que pouco a pouco conseguem mudar o mundo.
Crítica originalmente publicada no site Cine Medusa.