Crítica Elviras: Esplendor
Esplendor
Por Beatriz Saldanha
“Aparei um raio de sol na palma da mão e o depositei mansamente na face dela”. (Haruki Murakami, Caçando carneiros)
A jovem Misako (Ayame Misaki) trabalha em uma empresa de áudio-descrição, escrevendo textos que narram as ações dos filmes que são exibidos em cinemas acessíveis a deficientes visuais. Em uma das sessões-teste, seu desempenho é severamente criticado por Masaya (Masatoshi Nagase), um ex-fotógrafo famoso que, diferente das outras pessoas ali presentes, ainda possui visão parcial. O desafio de Misako é controlar a subjetividade de seus textos, de forma a deixar espaço para a imaginação. Assim, quem escuta poderá fazer suas próprias conjecturas e sentir o filme ao seu modo particular. Enquanto essa questão profissional norteia as ações da moça, Masaya fica cada vez mais amargurado ao perceber que a pequena parcela de visão que lhe restava está lentamente se esvaindo.
A proximidade de Misako com deficientes visuais aguça sua curiosidade sensorial. Ela passa a observar com maior atenção suas experiências cotidianas, o que desperta sensações desconhecidas e evoca memórias, como quando sente o ar quente que sai pelas narinas da mãe em contato com seus dedos ou quando tateia a carteira de couro que foi de seu pai. Isso é mostrado com uma sensibilidade que só o cinema japonês parece capaz de alcançar: ao mesmo tempo em que fala sobre questões humanas profundas, o faz com uma delicadeza incomparável.
Para além do exercício de sentidos, a diretora Naomi Kawase volta ao tema do luto, abordado em um longa anterior, mas por uma perspectiva mais abrangente. Em A floresta dos lamentos (2007), vencedor do grande prêmio do júri em Cannes, a diretora mostrou o duro, mas transformador processo de superação do luto através da história de duas pessoas que perderam seus entes queridos. Já em Esplendor, o foco é a brevidade das coisas a partir de uma ideia mais abstrata de que basta algo existir para que, um dia, pereça. A todo momento algo morre. E isso é marcado de maneira muito poética por feixes de luz do sol ou por esculturas na areia da praia. Aliás, a luz, em especial a do sol, pontua o filme. É ela que delineia figuras e dá sentido às formas.
Como fotógrafo, Masaya acreditava poder capturar o tempo, eternizá-lo, e por isso era extremamente apegado à capacidade de enxergar. Quando percebe estar completamente cego, perde o que havia de mais importante em sua vida e se dá conta de que nada é eterno. A mãe de Misako, por sua vez, sofre do mal de Alzheimer, o que faz com que se alimente das memórias antigas do falecido marido, como se não quisesse deixá-lo partir. Ao pôr-do-sol, ela repete em vão o ritual de esperá-lo voltar do trabalho. Ambos os personagens têm grande resistência em aceitar suas perdas. Sem a visão, o que resta para o ex-fotógrafo é a memória. Sem a memória, o que resta?
A vida contemporânea não combina com o exercício de estar presente, de explorar o potencial dos sentidos. São muitos estímulos que nos distraem do que acontece ao nosso redor, e perdemos a capacidade de observar, de nos comover com o ordinário. O filme de Kawase celebra o instante, pois isso é tudo que temos e que, no momento imediatamente seguinte, podemos perder. Esplendor não é um filme pessimista, é exatamente o oposto disso. É no reconhecimento e na aceitação da efemeridade da vida que reside a redenção.