Crítica Elviras: Lampião da Esquina
LAMPIÃO DA ESQUINA
Por Letícia Moreira
Circulando mensalmente entre 1978 e 1981, o Lampião da Esquina foi o primeiro jornal brasileiro assumidamente “gay” (como afirmam os fundadores), que, com linguagem incisiva, questionava a moral e os bons costumes da época, abordando a visibilidade LGBT junto a outros tabus, como aborto, prostituição, liberdade sexual, e em diálogo com outras militâncias, como o feminismo e o movimento negro. Surgia como uma alternativa crítica e bem humorada às publicações “revolucionárias” que, tais como O Pasquim, mantinham um discurso homofóbico e depreciativo.
Na esteira da luta das minorias, a comunidade LGBTQI+ vêm ocupando cada vez mais espaços de discussão e ação política. No Brasil dos anos 1970 e 1980, os grupos de lésbicas, gays, travestis etc. viviam um cenário de extrema repressão social, porém, o espírito contestatório e revolucionário fervoroso marcou uma época de importantes debates - políticos e culturais - progressistas para as minorias, e muitos permanecem urgentes até hoje. Conforme Aguinaldo Silva, Lampião representava o paradigma da violência machista do patriarcado, e o Lampião da Esquina vem como a crítica saindo do armário.
Dirigido por Lívia Perez, o documentário Lampião da Esquina (2016) expõe a trajetória de formação do jornal homônimo e, partindo desse mote, reconstrói historicamente a situação do movimento “guei” (linguagem proposta nas publicações do periódico), o cenário cultural e as vivências de homossexuais e travestis no Brasil, especificamente no eixo SP-RJ, nos anos finais da ditadura militar. A montagem linear, com depoimentos intercalados que convocam questões políticas e sociais concernentes, até a atualidade, aos sujeitos cujas sexualidades contestam a prisão heteronormativa, constrói um filme com reflexões potentes, denunciando como política, capitalismo e linguagem não podem ser separados das discussões sobre sexualidade e liberdade sexual. Tudo, porém, com um tom divertido e saudoso.
O filme constrói-se a partir de entrevistas a editores e colaboradores do jornal, bem como a personalidades assumidamente homossexuais da época, como Ney Matogrosso e Leci Brandão, em suas experiências particulares, e evidencia como o próprio movimento se via envolto em divergências e articulações nem sempre harmônicas, mas sem dúvida cruciais. É um filme que ao revisitar um passado, permite traçar inferências sobre os contornos que a militância LGBTQI+ assume hoje.
O discurso fílmico parte das questões levantadas e de fatos históricos relatados nas falas de Aguinaldo Silva, Laerte Coutinho, Celso Curi, João Silvério Trevisan, Antônio Carlos Moreira, Dolores Rodrigues, entre outros, quase sempre com o tom “afrontoso” que o próprio periódico assumia. Uma vez que os fundadores do jornal (e os entrevistados) são praticamente todos homens cis gay brancos, é sintomático que boa parte dos temas, termos e experiências (na narrativa) refiram-se a esse público. Tal fato, porém, não exclui a discussão sobre as lutas feminista, lésbicas e da resistência negra, que vão sendo inseridas ao longo do filme, ainda que quase sempre mediadas pelas vozes dos jornalistas (homens gays brancos, novamente).
Os rostos cujas vozes são contempladas no documentário são, com exceção de Leci, todos brancos. Tal fato nos leva a questionar justamente como a raça e a classe, já que os espaços mencionados são quase todos nas zonas nobres do Rio, são caras ao debate sociológico dos movimentos LGBT no país.
Como o que não é dito é também discurso poderoso, a quase rara presença dos temas em torno da transexualidade (ainda que Laerte esteja bastante presente ou que se refiram às opressões aos travestis) e da bissexualidade, por exemplo, revela o quanto determinados segmentos eram, dentro do próprio movimento LGBT, invisibilizados, e explica porque hoje muitos militam pelo reconhecimento de suas identidades específicas, e a questão da definição da própria sigla é um corolário claro dessas lutas.
O trunfo do filme parece ser, como já dito, a reconstrução de como a homossexualidade era tratada na época não só pelo jornalismo, que tem um poderio nas discussões que circulam na esfera pública, mas pela sociedade como um todo, muito nítido na sequência de abertura, em que um compilado de entrevistas reais expõe quão grotescas eram as violências. Como já havia comprovado em Quem matou Eloá? (2015), a direção de Lívia Perez demonstra maturidade de pesquisa e responsabilidade ao abordar um elemento importante da história nacional, como o primeiro jornal LGBT.
A direção de arte tenta reconstruir o estilo estético do Lampião, com imagens e cores chamativas, colagens sensacionalistas e afrontes visuais e linguísticos aos costumes homofóbicos, como as gírias gays. Ainda assim, o resultado é um filme formalmente “muito certinho” se comparado à ousadia do periódico. A trilha sonora com sucessos da MPB contribui com o clima de nostalgia e saudosismo ao movimento revolucionário que se introduziu com a criação do jornal, que, segundo Aguinaldo Silva, “não deu frutos, talvez por ser homossexual”.
Dentre os muitos pontos importantes suscitados, é nítido que, assim como a direita conservadora, a própria esquerda era violenta e pouco afeita à causa LGBT. Destaca-se a fala do (ainda não) presidente Lula de que não “havia homossexualidade no movimento operário”. Não estão ausentes os debates sobre a representatividade nas novelas, cinema, e recuperam-se muitos nomes de artistas que colaboraram com o propósito de denúncia e afirmação do jornal que não se dizia militante, mas porta-voz das militâncias. O argumento de como a linguagem é um instrumento de poder é afirmado por muitos entrevistados, que se apropriavam de termos antes pejorativos - “guei”, bicha, “bixórdia”, bofes, piranha - como modo de desconstruir seus sentidos e torná-los, assim, meios de afirmação de identidade. Se linguagem é poder, o é ainda mais quando reivindicada por aqueles a quem normalmente é negada.