Crítica Elviras: Desarquivando Alice Gonzaga
Desarquivando Alice Gonzaga
Por Raquel Gomes
Desarquivando Alice Gonzaga é um filme que nos surpreende. De maneira simples e sem grandes pretensões, a obra é uma viagem no tempo passado guiada por sua personagem central, sem perder a inscrição no presente. Alice, filha de Adhemar Gonzaga (fundador da Cinédia, primeiro estúdio de cinema do Brasil), é mulher da vida real, cheia de atitude, histórias e lembranças que se fundem à memória do próprio cinema brasileiro e que nos afeta pela sua presença singular.
A diretora Betse de Paula pouco intervém, aparecendo discretamente uma vez ou outra nas imagens e deixando que se ouça sua voz somente em alguns poucos momentos de entrevista. Além disso, faz de sua câmera uma observadora atenta de Alice, quase sempre a acompanhando ou enquadrando aquilo que Alice quer mostrar. Esta, por sua vez, não só preenche o campo com sua presença forte, altiva e de humor afinado, como também fala muito e não nos cansa, pois tem mesmo muito a dizer. O que não era para menos, já que Alice esteve presente, desde criança, nas produções dos filmes realizados pela Cinédia, que não foram poucos e fazem parte da história de como o cinema se estabeleceu por aqui, desde os anos 1930.
Os relatos de Alice também nos dão acesso a vivências atravessadas por questões de gênero e de classe, especialmente quando ela conta sobre as imposições sociais sofridas pela mãe e por ela própria. A dificuldade de assumir a direção da Cinédia, por exemplo, mesmo sendo ela a pessoa mais competente para tal, desloca a experiência pessoal para uma representação da dificuldade de muitas mulheres nos seus processos de empoderamento.
No entanto, a rememoração pessoal de Alice é mais significativa quando nos leva a conhecer fotos, documentos, revistas antigas – com ilustrações belíssimas –, casos e bastidores do cinema brasileiro à época da realização dos filmes da Cinédia, e também quando ela traz detalhes de seu cuidadoso trabalho de arquivo e preservação, enfrentando, até mesmo, uma enchente nesse caminho. É triste pensar que a preservação do nosso cinema ainda depende muito de iniciativas privadas, como a dela. Mas também fica a admiração pelo empenho tão necessário.
Nesse sentido, o filme mostra toda sua força metalinguística, pois traz, para o primeiro plano, imagens dos filmes antigos citados e homenageia os envolvidos, destacando seus nomes. Verdadeiras relíquias do cinema brasileiro, muito bem restauradas pela própria Alice. Nesses trechos, que aguçam a curiosidade do espectador pelas obras completas, é possível ver trabalhos do diretor Humberto Mauro, a primeira atuação de Grande Otelo, o único filme em que Carmen Miranda aparece sem seu figurino típico, obras de mulheres precursoras como Gilda Abreu e Carmen Santos, entre outros.
Passado quase todo o tempo em espaços internos e corredores estreitos de arquivos, por estes serem os lugares centrais para a personagem, o filme se revela sensível ao permitir que, em sua última sequência, Alice não se restrinja a esses cenários. Ela se torna a imagem perfeita do joie de vivre – ou, numa tradução livre para o português, da alegria de viver – saindo de seu apartamento para um encontro com o sol e o mar do Rio de Janeiro. Fica a sensação de uma vida com muitas memórias, mas que também é vivida no presente com a mesma energia e propósito de tempos idos.